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Propriedades Medicinais e Usos Tradicionais da Pitanga (Eugenia uniflora)

Propriedades Medicinais e Usos Tradicionais de Eugenia uniflora (Pitanga)

Introdução e Nomenclatura

A espécie Eugenia uniflora L., popularmente conhecida no Brasil como Pitanga ou ainda em outros países como Surinam Cherry (“Cereja do Suriname”), é uma planta de notável relevância em diversas culturas, valorizada tanto por seus frutos comestíveis de sabor ácido quanto por suas aplicações na medicina tradicional.

Originária da América do Sul, sua ampla distribuição e adaptação a diferentes ecossistemas permitiram a incorporação de seus frutos, folhas e sementes em práticas etnobotânicas que atravessam gerações.

A documentação científica de suas propriedades é uma iniciativa estratégica, pois permite validar empiricamente os conhecimentos tradicionais, além de desvendar seu potencial para o desenvolvimento de novos agentes farmacológicos.

Neste artigo tenho a intenção de consolidar o conhecimento atual sobre a E. uniflora, abrangendo desde sua descrição botânica e composição fitoquímica até algumas atividades farmacológicas comprovadas (propriedades medicinais da pitanga) e seus usos tradicionais.

Pitanga madura
Pitanga madura

A diversidade de nomes atribuídos à Eugenia uniflora reflete sua disseminação e importância em diferentes contextos culturais e comerciais.

Nomes Comuns Finalidade
Pitanga, Pitangueira Nome popular e amplamente utilizado aqui no Brasil, seu país de origem.
Surinam Cherry Nome comercial comum em inglês, indicando sua popularidade no Caribe.

Para garantir a correta identificação e estudo desta espécie, é fundamental uma descrição botânica precisa, que será detalhada a seguir.

Descrição Botânica e Distribuição Geográfica da Pitanga

A caracterização botânica e a análise da distribuição geográfica são etapas fundamentais no estudo de plantas medicinais. As condições agroecológicas, como clima e tipo de solo, influenciam diretamente o metabolismo secundário da planta, resultando em potenciais variações na concentração e no perfil de seus compostos fitoquímicos. Compreender esses fatores é essencial para a padronização de extratos e a reprodutibilidade dos achados científicos.

Descrição Botânica

A Eugenia uniflora é um arbusto perene ou pequena árvore que pode atingir até 7,5 metros de altura. Suas folhas são opostas, de formato oval a lanceolado, com 4 a 7 cm de comprimento, de cor verde-escura e brilhante na face superior. Quando jovens, as folhas apresentam uma tonalidade bronzeada ou avermelhada. As flores são brancas, com quatro pétalas delicadas e um tufo proeminente de aproximadamente 50 a 60 estames brancos com anteras amarelo-pálidas.

O fruto é a característica mais distintiva da planta: uma baga globosa, com 2 a 4 cm de diâmetro, marcada por 7 a 8 sulcos ou “costelas” longitudinais. Sua cor varia do laranja-avermelhado ao escarlate intenso ou púrpura-carmesim à medida que amadurece.

Folhas novas de uma pitangueira
Folhas de uma pitangueira. Note a cor avermelhada das folhas novas. Imagem: Fábio dos Reis

Distribuição e Agroecologia

A espécie é nativa do sul do Brasil, Uruguai, Paraguai e nordeste da Argentina, tendo sido amplamente disseminada para outras regiões tropicais e subtropicais do mundo. A planta demonstra grande adaptabilidade, prosperando em climas que variam do tropical ao subtropical quente. Requer um período de seca para uma floração e frutificação mais abundantes e apresenta boa tolerância à seca, uma vez estabelecida. Embora prefira solos ricos e bem drenados, pode se desenvolver em uma variedade de tipos de solo.

Plantas maduras podem suportar geadas leves e temperaturas de até -5,5 °C.

A descrição da planta e de seu habitat fornece a base para a análise de seus componentes químicos, que são a chave para suas propriedades medicinais e nutricionais.

Composição Nutricional e Fitoquímica da Pitanga

A análise da composição nutricional e fitoquímica é fundamental para compreender a base científica das propriedades medicinais e do valor alimentício da Eugenia uniflora. O fruto é uma fonte de macro e micronutrientes, enquanto as folhas e sementes concentram uma diversidade de compostos bioativos, como flavonoides e lectinas, que são responsáveis por suas atividades farmacológicas.

Análise Nutricional da Pitanga (Fruto)

O valor nutricional do fruto da pitanga pode variar ligeiramente dependendo da origem e das condições de cultivo, como demonstram as análises de diferentes fontes. A tabela abaixo compara os dados nutricionais reportados.

Componente Nutricional Amoo et al. (2006) Morton (1987) Lorenzi et al. (2006)
Umidade 17,21 g 85,4–90,70 g 88,05 g
Proteína 14,71 g 0,84–1,01 g 0,97 g
Gordura 15,62 g 0,4–0,88 g 0,64 g
Carboidratos 38,55 g 7,93–12,5 g 10,2 g
Fibra 9,77 g 0,34–0,6 g
Cinzas 4,94 g 0,34–0,5 g 0,42 g
Cálcio (Ca) 9 mg 9,0 mg
Fósforo (P) 11 mg 11,0 mg
Ferro (Fe) 0,2 mg 0,20 mg
Vitamina A (Caroteno) 1.200–2.000 I.U. 0,0003 mg
Tiamina (B1) 0,03 mg 0,03 mg
Riboflavina (B2) 0,04 mg 0,05 mg
Niacina 0,03 mg 0,16 mg
Vitamina C (Ác. Ascórbico) 20–30 mg 19,5 mg
Magnésio (Mg) 1246,41 mg/kg
Zinco (Zn) 273,34 mg/kg
Sódio (Na) 997,32 mg/kg
Potássio (K) 4271,30 mg/kg
Nota: Os valores de Amoo et al. (2006) parecem ser baseados em peso seco, o que explica as grandes discrepâncias com os outros estudos, baseados em peso fresco (por 100g de porção comestível).
Pitangas amadurecendo no pé
Pitangas amadurecendo no pé. Atribuição: Image by Светлана from Pixabay

Compostos Fitoquímicos Identificados

Folhas As folhas de E. uniflora contêm flavonoides importantes, como quercetina, miricitrina e miricetina. Estes compostos foram identificados como responsáveis pela capacidade do extrato da folha de inibir a enzima xantina oxidase (Schmeda-Hirschmann et al., 1987).

Sementes Das sementes foi isolada uma lectina denominada EuniSL (Oliveira et al., 2008). Esta proteína apresenta uma massa molecular de 67 kDa e demonstrou ser termo-resistente, mantendo sua atividade em uma faixa de pH estável. A EuniSL aglutina eritrócitos de coelho e humanos, sendo a aglutinação inibida por glicoproteínas.

A identificação de flavonoides e lectinas fornece a base molecular para as diversas atividades farmacológicas atribuídas à planta, como a inibição da xantina oxidase e a ação antimicrobiana, que serão exploradas na seção seguinte.

Atividades Farmacológicas Comprovadas da Pitangueira

A validação farmacológica é essencial para confirmar a eficácia e os mecanismos de ação dos usos tradicionais da pitanga, estabelecendo uma ponte robusta entre o conhecimento etnobotânico e a pesquisa científica moderna. Estudos in vitro e in vivo têm corroborado muitas das aplicações populares da E. uniflora, elucidando as bases moleculares de sua bioatividade.

Atividade Anti-inflamatória

O extrato das folhas de E. uniflora demonstrou uma “ação anti-inflamatória altamente significativa”. Este achado, reportado por Schapoval et al. (1994), valida o uso tradicional da planta em condições inflamatórias e sugere a presença de compostos capazes de modular as vias da inflamação.

Atividade Antimicrobiana e Potencializadora de Antibióticos

A lectina (EuniSL) isolada das sementes apresentou uma “notável atividade antibacteriana não seletiva”, inibindo o crescimento de microrganismos como Staphylococcus aureus, Pseudomonas aeruginosa, Klebsiella sp., Bacillus subtilis, Streptococcus sp. e Escherichia coli (Oliveira et al., 2008). Além da ação direta, o extrato etanólico das folhas demonstrou uma atividade potencializadora de antibióticos, exibindo sinergismo com a gentamicina contra cepas de E. coli (Coutinho et al., 2010a).

Atividade Hipotensora

Consistente com seu uso tradicional como anti-hipertensivo, a E. uniflora tem sido documentada na medicina popular da América do Sul para este fim (Consolini e Sabburio, 2002). Esta aplicação etnobotânica sugere a presença de compostos com potencial para modular a pressão arterial, alinhando-se com os relatos de seu emprego contra a pressão alta.

Atividade no Sistema Nervoso Central (SNC)

O extrato hidroalcoólico das folhas apresentou atividade no sistema nervoso central em testes de triagem. A toxicidade aguda foi determinada, com uma dose letal mediana (LD50) de 220 mg/kg por via intraperitoneal (i.p.) em camundongos, indicando uma toxicidade moderada por essa via de administração (Schmeda-Hirschmann et al., 1987).

Inibição da Xantina Oxidase

A inibição da enzima xantina oxidase é um mecanismo chave no tratamento da gota. Os flavonoides presentes nas folhas de E. uniflora, como quercetina e miricetina, foram identificados como os responsáveis por essa atividade inibitória. Este achado fornece uma explicação bioquímica para o uso tradicional da planta por curandeiros no Paraguai para o tratamento da gota (Schmeda-Hirschmann et al., 1987).

As atividades farmacológicas validadas cientificamente estão fortemente alinhadas com os usos populares e tradicionais da planta, tema que será abordado na próxima seção.

Usos Etnobotânicos e Medicinais Tradicionais da Pitangueira

O conhecimento etnobotânico representa um valioso repositório de informações sobre o uso de plantas medicinais, acumulado ao longo de gerações. O caso da Eugenia uniflora exemplifica essa rica tradição, com diferentes partes da planta sendo utilizadas para uma variedade de finalidades terapêuticas em diversas regiões da América do Sul e do mundo.

A seguir, são listados os principais usos tradicionais medicinais da pitanga documentados em diversos países:

  • Paraguai: Uma decocção ou infusão das folhas é utilizada para reduzir os níveis de colesterol e a pressão arterial. Também é empregada por curandeiros nativos para o tratamento da gota.
  • Brasil: A infusão das folhas é consumida como febrífugo (para baixar a febre), adstringente e para tratar problemas estomacais.
  • Suriname: A decocção das folhas é ingerida como remédio para resfriados e, em combinação com capim-limão, como febrífugo.
  • Madeira: Os frutos são consumidos para tratar problemas intestinais.
  • América do Sul (Geral): A infusão das folhas é utilizada como estomáquico (para problemas digestivos), febrífugo e adstringente. Os frutos e as folhas também são usados por suas qualidades adstringentes e contra a pressão alta.

A popularidade e a longa história de uso tradicional tornam muito importante a avaliação dos aspectos de segurança e toxicidade para garantir sua aplicação segura.

Estudos de Toxicidade

A avaliação da toxicidade é uma etapa crítica para garantir a segurança no uso de extratos de plantas, mesmo que estes possuam um longo histórico de uso tradicional. Estudos toxicológicos ajudam a identificar potenciais efeitos adversos e a estabelecer limites seguros de dosagem.

Pesquisas sobre a Eugenia uniflora revelaram alguns efeitos tóxicos que merecem atenção:

  • Um estudo conduzido por Fiuza et al. (2009) utilizou o hepatopâncreas do peixe tilápia (Oreochromis niloticus) como modelo experimental. A exposição ao extrato bruto das folhas e suas frações induziu vasodilatação, congestão vascular e outros sinais de toxicidade, como a presença de células granulares eosinofílicas e raras necroses focais.
  • Conforme já abordado na análise de sua atividade no SNC, a toxicidade aguda do extrato hidroalcoólico das folhas foi avaliada em camundongos por Schmeda-Hirschmann et al. (1987). O estudo determinou uma dose letal mediana (LD50) de 220 mg/kg quando administrado por via intraperitoneal, o que indica uma toxicidade moderada por esta via específica.

Assim, esses achados sublinham a necessidade de cautela e de mais pesquisas para definir os parâmetros de segurança para o consumo humano, preparando o caminho para uma conclusão abrangente do perfil da planta.

Conclusão

Este artigo procurou consolidar as evidências científicas e o conhecimento tradicional sobre a Eugenia uniflora (Pitanga), destacando seu duplo valor como um alimento nutritivo e como uma fonte promissora de compostos bioativos. Os frutos são ricos em vitaminas e minerais, enquanto as folhas e sementes contêm fitoquímicos com múltiplas propriedades farmacológicas comprovadas, incluindo atividades anti-inflamatória, antimicrobiana, e de inibição da xantina oxidase, além de indicações de atividade hipotensora.

Notavelmente, há um forte alinhamento entre os usos etnobotânicos—como o tratamento de febre, hipertensão e gota no Brasil e no Paraguai—e as atividades farmacológicas validadas em laboratório. Essa convergência reforça a importância do conhecimento tradicional como guia para a pesquisa científica.

Apesar de seu vasto potencial terapêutico, os estudos de toxicidade indicam a necessidade de investigações adicionais para garantir a segurança de seu uso. A Eugenia uniflora representa um excelente candidato para futuras pesquisas focadas no desenvolvimento de novos fitoterápicos e alimentos funcionais, desde que sua segurança seja plenamente estabelecida.

Referências

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Schmeda-Hirschmann, G., Theoduloz, C., Franco, L., Dutra-Behrens, M., & Degen, R. (1987). Preliminary pharmacological studies on Eugenia uniflora leaves: xanthine oxidase inhibitory activity. Journal of Ethnopharmacology, 21(2), 183–186.

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